terça-feira, 9 de setembro de 2014

Talvez bombons


Je vous ai apporté des bonbons    2014  Acrílicos s/ tela  125x195 cm


Quel bon dimanche pour la saison    2014  Acrílicos s/ tela  125x195 cm


Parce que les fleurs c'est périssable 2014 Acrílicos s/tela 150x180cm

Les bonbons c’est tellement bon    2014  Acrílicos s/ tela  125x195 cm


Les gens me regardent de travers  2014  Acrílicos s/ tela  130x180 cm
Je viens rechercher mes bonbons 2014  Acrílicos s/ tela  125x195 cm
J'espère qu'on pourra se promener I   2014  Acrílicos s/ tela  80x100 cm
J'espère qu'on pourra se promener II   2014  Acrílicos s/ tela  80x1o0 cm
J'espère qu'on pourra se promener III   2014  Acrílicos s/ tela  80x120 cm
J'espère qu'on pourra se promener IV   2014  Acrílicos s/ tela  80x120 cm
 Talvez bombons


Se quiser ler isto como um manual de instruções, saiba que há duas versões de uma voz podendo, para entrar no jogo, supor-se uma feminina e outra masculina – o que não é certo, mas serve para o caso.
Há então aquele momento em que a tal canção deixa de se ouvir e ele (de novo uma suposição - é de si que se trata) desiste de entender a razão daqueles estranhos recém-chegados, troca de lugar com ela (novo personagem igualmente aleatório) e entra no barco branco, deixando-se ir nas águas para longe da praia. À medida que se afastam, ouvem menos a restolhada dos pássaros a  lutarem pelos ninhos das árvores e a caírem quando falham, cada vez mais bravos. Mas, ainda confundidos com eles, numa fúria repentina impossível de travar, um dos dois (não interessa qual) olha para trás e, em jeito de sniper, atira aos maiores, repetidamente, apenas conseguindo aumentar a violência com que se debatem e devoram. Sem perder mais tempo,  com um nó na garganta, contemplam os tons do crepúsculo que se afunda escuro, morno e perfumado, sobre a imagem idílica da paisagem. Da água vem a mesma melodia que toca baixinho e luzes, brilhos que se confundem com peixes voadores mas, tal como se ignora a subida das marés, não se sabe o que são.
Deixam-se ir.

A segunda folha do manual diz para voltar atrás e começar de novo, por exemplo, pela tampa de uma caixa (de bombons, pode ser), como porta de um cenário sem palco que você mesmo pode atravessar numa dança muito sua (valsa, hip-hop ou vira, twist, tanto faz, só na aparência é a solo pois estou lá também).
O mundo é esse lugar e este o nosso tête-a-tête, mas as imagens desse mundo são-no apenas no sentido de constituírem provas visíveis da passagem dele por nós dois, e pela sua capacidade de fundação no nosso próprio imaginário: precário espelho, insinuante, suspeito. O delito cometido reside no próprio olhar: ele age. Mas, desde que ver se tornou um ato comunitário (tanto ou mais do que individual porque, já se sabe, cada par de olhos contém milhões de outros e a vulgaridade alastra), por culpa dele, do olhar, nada é uma única coisa: ou seja, uma pedra não é apenas uma pedra, nem uma nuvem um mero acidente no céu. O desafio então é entrar nesse abismo, ver pouco a pouco e de pernas para o ar, ir descobrindo. E aceitar que, quando se julga agarrar, se perde de novo. Porque, tal como a matéria líquida e escorregadia (feminina?), o tempo é caprichoso. Na pintura, a imobilidade é apenas corpo da suspensão impossível do tempo. Mas, se tudo correr bem, escuta-se nele nova voz subtil, numa extraordinária coincidência (de ecos?) que revela a estranha dificuldade da solidão ao eremita mais convicto.

É aí que, no manual de instruções, depois de je viens rechercher mes bonbons, falta a terceira página. Apenas podemos constatar os nossos personagens num miradouro talvez flutuante, ou à beira de um rio ou de um lago paradisíaco: pastam animais afáveis, alisam pratas de bombons até terem toque de cetim, alinham cores por parecenças e contrastes, pura contemplação ao som da pulsação natural nas veias, tranquila;  talvez guardem essas peles coloridas e brilhantes em pacotes de diferentes formatos, que rapidamente encherão tudo, talvez com elas façam uma nova ilha, uma jangada ou uma nave que desafie as águas que tudo invadem e permita partir de novo, navegar ou voar, regressar de novo, ser, sentir, agir (?).
Com a caixa, é certo, vinham flores vermelhas. Inesquecíveis como a alegria no estado puro, que mareja os olhos sem querermos. Tão perissables.
Algo absolutamente imprescindível, e por isso.

Isabel Sabino, abril de 2014